O património português é rico, diversificado e fundamental para a compreensão da História do país. Mas também está em perigo. Um rei, o primeiro, deu inicio à sua salvaguarda sistemática...
O património, uma noção em construção
Se hoje é indiscutível que as recordações deixadas pelos nossos antepassados devem ser protegidas, nem sempre foi assim. A noção de património e da sua salvaguarda construíram-se progressivamente, coincidentes com o despertar de uma consciência nacional e do gosto pela Antiguidade clássica.
O Renascimento veio trazer à luz do dia das elites intelectuais a importância do passado, com a redescoberta de autores antigos e de obras de arte clássicas. O gosto pela Antiguidade traduziu-se pelos primórdios da arqueologia e proteção do património. Queria-se conhecer cada vez mais e melhor o período greco-romano, idealizado como modelo perfeito para a nova sociedade renascentista.
A Lei do 20 de Agosto de 1721
As iniciativas de pesquisa e salvaguarda eram, porém, parcelares e descoordenadas, fruto de vontades particulares. Não existia uma noção de património tal como a entendemos hoje[1]. Este património, materializado em monumentos ou artefactos, só viria a adquirir importância jurídica global com o alvará régio de D. João V de 20 de Agosto de 1721.
A lei joanina era clara quanto ao seu objetivo: proteger o que era “hum meyo próprio, e adequado, para verificar muitas noticias da venerável antiguidade, assim sagrada como politica, e que seria muy conveniente à luz da verdade”. Isto, porque este património pode ser importante para a “gloria da Nação Portugueza”.
Influenciado pelas ideais racionalistas do século das luzes, o alvará joanino veio clarificar a noção mesmo de património, primeiro dando-lhe uma tipologia:
Edificios, Estatuas, Marmores, Cippos, Laminas, Chapas, Medalhas, Moedas, e outros artefactos
E depois um horizonte temporal: “até o reinado do Senhor Rey D.Sebastião”. Antes de se proteger, era necessário saber o que se devia proteger. Para conseguir os seus objetivos, o alvará toma várias disposições, que ainda hoje são os alicerces da salvaguarda e conservação do nosso património construído.
Medidas de proteção do património
A mais emblemática a meu ver será talvez a nomeação expressa das entidades encarregadas pelo património e das suas competências. As “Cameras das Cidades e Vilas” ficam assim responsabilizadas pelos seus patrimónios respetivos, tal como definidos no alvará. O estado assume desta forma plenamente o seu papel na conservação física do seu passado. A par das câmaras municipais, a recém-criada Academia Real da História teve a seu cargo com o alvará o inventário de todo o património de relevo e a conservação dos monumentos nacionais.
Para dar força à lei, duas disposições foram fulcrais: a criação de uma verba que permitisse à Academia Real cumprir a sua missão e a eventual compra de bens patrimoniais a particulares “pelo seu justo valor”; o estabelecimento de penas para quem desfazesse, deteriorasse ou encobrisse bens patrimoniais.
O alvará engloba também o património que ainda não é conhecido, criando condições para o salvaguardar. As peças que fossem achadas ou descobertas tinham de ser reportadas à Academia Real. A Academia tinha latitude para escolher a melhor forma de preservar este “novo” património. Deu-se assim o tiro de partida para a criação de um primeiro museu arqueológico na sede da Academia Real de História de Portugal, infelizmente perdido no terramoto de 1755 com o restante palácio dos duques de Bragança onde estava instalado.
Uma Lei inovadora
A lei joanina foi precursora das leis atuais, estabelecendo desde logo aspetos fundamentais da conservação do nosso património. Definiu o que era património; designou responsáveis pela sua conservação; criou um orçamento em prol da sua defesa; instituiu na lei penas contra os prevaricadores e finalmente obrigou a que as novas descobertas lhe fossem comunicadas.
Denota-se hoje nestas disposições um dos eixos fundamentais da nossa atual Direção Geral do Património Cultural, herdeira das prerrogativas da Academia joanina: “O conhecimento, o inventário, a salvaguarda, a conservação, a valorização, a divulgação do património cultural”[2].
Bibliografia
- Alvará, ANTT, 20/08/1721, Chancelaria D. João V.
- Lei n. ° 107/2001 de 8 de setembro
- ORTIGÃO, Ramalho – O Culto da Arte em Portugal, Lisboa, António Maria Pereira, 1896. [consult. 31/03/2020]. Disponível na Internet: http://purl.pt/207
- PRATA, Jorge Manuel – A emergência da noção de Património. Lisboa : Universidade de Lisboa, 2010. Pós-graduação em direito do património. [consult. 31/03/2020]. Disponível na Internet: https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/662-1093.pdf
- RAMOS, Paulo Oliveira – O alvará régio de 20 de agosto de 1721 e D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses, o 1° marquês de Abrantes: uma leitura. “Discursos [Em linha] : língua, cultura e sociedade”. Lisboa : Universidade Aberta, 2005. [consult. 31/03/2020]. Disponível na Internet: https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/4320
[1] “integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização”, Artigo 2. ° da Lei n.º 107/2001 de 8 de Setembro
[2] Fonte: http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/o-que-fazemos/ , consulta a 01/04/2020