O país, outrora chamado de Lusitânia no sul e Galécia no norte, é hoje designado pela palavra Portugal. Este nome assinala o surgimento de uma nova entidade politica, nascida no século IX, e que acabará por obter a independência total no século XII.
Conhecer a origem etimológica de Portugal passa por conhecer a origem etimológica da Galiza. O sufixo -gal possui uma evidente ligação com o Gal de Galiza, como iremos ver.
O Ocidente ibérico, uma mistura de povos
Durante a conquista Romana, vários povos viviam no oeste da península ibérica. Estes povos, frequentemente celtiberos, não eram homogéneos, ao contrário do que as palavras genéricas “Galaicos” ou “Lusitanos” para os designarem poderiam deixar pensar.
Desprovidos de escrita, foram os Gregos e de seguida os Romanos que nos falam destes povos. Vistos de Roma, eram todos parecidos. Porém, fortes disparidades existiam, entre os que moravam nas montanhas e os das planícies, os que tinham antepassados celtas e os que eram plenamente autóctones.
Quando Roma reorganizou administrativamente a península ibérica, separou o que é hoje Portugal em duas entidades distintas : a Lusitânia a sul do Douro e a Galécia a norte. Na foz deste rio, uma cidade, ou aliás, duas : Porto e Gaia.
Os Galaicos, antepassados dos Portugueses
Foi o historiador Apiano quem, pela primeira vez, referiu os Galaicos, mais de dois séculos depois dos factos. No dia 9 de Junho de 137 a.C., o Romano Décimo Júnio Bruto, que tinha a seu encargo a conquista do noroeste da península ibérica, obteve uma grande vitória sobre os Galaicos durante a Batalha do Douro, nas imediações da cidade atual do Porto. Os povos que compunham os Galaicos, de origem celta, viviam nos famosos “castros”, pequenas aldeias ou cidades de pedra, bem conhecidas no noroeste peninsular.
O povo mais importante dos Galaicos, os Brácaros, viviam na metade sul da Galécia, no que é hoje o norte de Portugal. No seu território, os Romanos vão estabelecer uma nova cidade criada sobre um antigo castro, Bracara Augusta, a atual Braga.
Durante séculos, Braga foi a capital da província romana da Galécia, muito mais extensa do que a atual Galiza. Esta predominância de Braga iria continuar depois com o reino Suevo, povo “bárbaro” que ocupou o território dos Galaicos durante a desintegração e queda do Império Romano. Muito mais densamente povoada que o resto do território português atual, a metade sul da Galécia será o ponto de partida para o povoamento de Portugal durante a Reconquista.
Etimologia da palavra “Galaico”
Isidoro de Sevilha, arcebispo no século VII, ao tentar explicar a origem da palavra “Galaico”, fez uma associação com a palavra grega γάλα, que significa “leite”. Para Isidoro, a pele dos povos da Galécia (e da Gália) era branca como o leite, o que deu origem ao nome. Esta explicação é, como muitas vezes com os escritos da época, de uma lenda sem qualquer fundamento, como os milagres fabulosos – e inventados – da Idade Média.
De época mais recente, a proximidade do “Cal” em Callaecia (Galécia em latim) com a deusa celta Cailleach fez dizer que talvez, os Galaicos seriam os adoradores da deusa mãe Cailleach. Coisas lidas na Wikipedia, citando o autor espanhol Eugenio R. Luján Martínez, mas que nada na sua bibliografia confirma.
Relembramos aqui que a letra G encontra a sua origem na letra C. Desta forma, nos textos antigos, Gallaeci ou Callaeci designavam exatamente a mesma coisa, os Galaicos.
Várias hipóteses sérias devem ser hoje tidas em conta quando se procura a origem etimológica de “Callaeci”.
- Uma origem céltica, com a raiz “cala”, um curso de água entre duas montanhas.
- Uma origem latina, com a raiz “collis”, monte.
Repare : vemos com frequência a referência ao termo grego καλλαικoι (kallaikoi) para designar os Galaicos. Os historiadores gregos que utilizavam esta palavra partiam da base latina Callaeci. Devemos lembrar-nos que no seio do Império Romano, o grego era uma língua cultural, muito usitada pelas elites do império. Era o caso de Apiano que citamos mais acima, autor de uma História Romana em língua grega.
Portus Cale, no extremo sul da Galécia
A foz do Douro era conhecida na época romana pelo nome de Cale. Cale era uma cidade situada na fronteira do território dos Galaicos. A proximidade do latim Cale com o céltico Cala é evidente.
- Podemos imaginar facilmente que Cale era a cidade dos Callaeci (Galaicos), como Braga é a cidade dos Brácaros.
- A não ser que seja o nome céltico “Cala” da região que deu o seu nome ao povo que lá morava? Os Galaicos seriam desta forma os moradores da região du curso de água entre duas montanhas. Penso que é uma descrição elegante da geografia de todo o norte do Douro.
De qualquer forma, Cale parecia ser o início do território deste antigo povo. Foi aqui que Décimo Júnio Bruto combateu pela primeira vez os Galaicos. Esta explicação ainda tem ainda mais razão de ser quando sabemos como são as encostas junto ao rio Douro neste sitio, dando força à raiz céltica “cala” que vimos mais acima.
Ainda permanece um problema : não existia uma, mas duas cidades nomeadas Cale. A Cale do sul do Douro, antepassada da atual Gaia, e a Cale do norte do Douro, antigo castro que ficava na Pena Ventosa, hoje Morro da Sé.
Uma vez mais, parece-me possível que os dois lados do Douro tivessem o mesmo nome, os Romanos talvez não fazendo, visto de Roma, qualquer diferença. Mas o que é certo, o porto da cidade de Cale, esse, era bem conhecido pelo nome de Portus Cale. Era do porto que partiam e chegavam as mercadorias, onde certamente as pessoas passavam de um lado do Douro ao outro. Ficava na atual Ribeira do Porto.
Mas no período romano, ninguém designa ainda a região por Portus Cale… o que invalida a sugestão etimológica de origem grega, καλός (Kalós), que significa “belo” ou “bom”. Portus Cale é o porto da cidade de Cale, não é o “Belo Porto”.
Portus Cale e a Reconquista do século IX
A primeira menção de “Portocale“, localidade do Douro cujo nome deriva diretamente do latim Portus Cale, parece ter sido feita em moedas do rei visigodo Leovigildo. Este rei unificou a península ibérica, vencendo definitivamente os Suevos em 584. Para celebrar as suas vitórias cunhou moedas. Uma delas fazia referência a Portocale.
Este “Portocale” ainda não faz referência ao território português, só à cidade e as suas imediações. A primeira fonte comprovada escrita de que temos conhecimento da região chamada de “portucalensis” é mais recente. Foi a ocupação da região por Vimara Peres e a sua conquista da cidade de Portocale en 868 após anos de luta que irão marcar o início do Condado (da cidade) de Portucale, ou Condado Portucalense, futuro reino de Portugal.
Porto do Graal, cidade dos Templários ?
Na Internet, infelizmente com muita frequência, podemos ler as elucubrações mais descabidas ao lado de dados científicos, ficando tudo com a mesma importância para os leigos. Dizendo respeito a Portugal, uma das explicações favoritas dos amigos do esoterismo e outras histórias bonitas está diretamente ligada à lenda arturiana e a busca do Graal.
Os Templários, cujo objetivo final seria de encontrar o Graal, teriam vindo conquistar Portugal porque aqui é que ficaria o santo cálice. Portugal seria de facto o Porto do Graal, Graal que teria dado o nome a Portugal. Por consequência, hoje em dia, também se pensa que, junto com o cálice que recolheu o sangue de Cristo, também se esconde em Portugal o fabuloso dos Templários.
Poderíamos fazer desta história um filme de cinema… ou um livro. E precisamente, a origem da popularização desta invenção encontra-se nos textos de Freitas de Lima, reunidos em 2006 num livro chamado “Porto do Graal”. Freitas de Lima, falecido em 1998, foi um artista bem conhecido, maçom e grande conhecedor do esoterismo.
O artista escritor não se reclamava da ciência histórica, só da Arte, e não é, no fundo, criticável. Procurava, à sua maneira, as origens espirituais de Portugal e novos mitos que podiam ser ligados ao país. A publicação em 2006 de um livro esotérico foi uma bela operação de marketing da editora, que aproveitava-se do imenso sucesso de Dan Brown e do seu Da Vinci Code, publicado em 2003…
A ordem do Templo foi criada em 1129. A palavra “Graal” surge um pouco mais tarde, no final do século XII. A ligação dos Templários à história do Graal, escrita no século XII por Chrétien de Troyes, só aparece em elucubrações do século XIX…
Outros autores também seguiram o mesmo caminho, mas não são mais historiadores do que Lima de Freitas. Será o caso de José Rosa Baptista, autor de um “PORTVS GRAAL – História Hermética de Portugal”, publicado em 2014.
Também podemos afirmar que alguns media, que pretendem fazer vulgarização histórica, retomam estas aproximações, baseando-se numa leitura particular de um selo real de D. Afonso Henriques. Para os que quiserem saber mais, deixo aqui uma ligação ao excelente artigo de Maria do Rosário Barbosa Morujão acerca dos selos reais portugueses. E o que nos diz a professora, doutora em História da Idade Média ?
De acordo com a tradição, D. Afonso Henriques teria tido selo, à semelhança de seus primos Afonso VII de Leão e Castela (1135-1157) e Fernando II de Leão (1157-1188). Mas, na verdade, e como já foi demonstrado, não conhecemos nenhum selo que lhe possa ser atribuído sem margem para dúvidas.
A maioria dos documentos supostos serem de D. Afonso Henriques são de data posterior, falsos.
Não é necessário misturar as letras de um selo para que ele diga o que quisermos. No selo que vemos no documento da doação de D. Afonso Henriques aos Templários, o que vemos? Talvez um símbolo escondido destinado aos Templários, porque não. Mas para isso, o documento deveria ser autêntico…
D. Afonso Henriques era alguém de muito pragmático. Obviamente que os Templários vinham a Portugal combater os Mouros. Claro que podiam acreditar no Graal, e, porque não, talvez até pensar que poderiam encontrar em terras ibéricas a finalidade das suas buscas guerreiras e espirituais. D. Afonso Henriques, fazendo um piscar de olhos (provável) aos Templários nos seus selos (se forem autênticos), procurava também a sua simpatia, e dava uma dimensão mística à sua luta contra o Islã. Os Templários eram uma força importante na Reconquista, e permitiam a D. Afonso Henriques ter aliados poderosos contra por um lado os Mouros, mas também por outro lado contra o rei de Leão e Castela.
Encontramos esta dimensão mística no pretenso milagre de Campo de Ourique, onde o soberano teria visto no céu um anjo dizer-lhe que ele venceria a batalha. Uma história cuja primeira referência é do século XIV, dois séculos depois da batalha… e que não é mais do que a cópia do milagre da Ponte Mílvia de Constantino.
A possibilidade que o nome de Portugal viesse do Graal não é de todo exequível, como o terá percebido. Portugal, ou melhor, Portucale, já existia bem antes dos Templários!
Fontes
- MATTOSO, José – História de Portugal. vol.1. Lisboa : Círculo de Leitores, 1992.
- MATTOSO, Jose – Identificação de um país. Lisboa : Círculo de Leitores, 2015.
- MONTERO SANTALHA – O nome da Galiza. GZe-ditora, s.d.
- MORALEJO, Juan J. – Caillaca Nomina – Estudios de Onomástica Gallega. A Corunã : Fundación Pedro Barrié de la Maza, 2007. Disponible sur : http://ilg.usc.es/agon/wp-content/uploads/2010/09/Callaica_Nomina.pdf
- PLIEGO, Ruth – Gallaecia en tiempos del Reino Visigodo de Toledo: sus emisiones monetarias. In Historia monetaria de Galicia. Santiago de Compostela : F. Cebreiro Ares, 2012, pp 65-104. Disponible sur : https://www.academia.edu/1140842/Gallaecia_en_tiempos_del_Reino_Visigodo_de_Toledo_sus_emisiones_monetarias
- RAMOS, Rui – História de Portugal. Lisboa : A Esfera dos Livros, 2009.