O Património precisa de heróis, de alguém que o defenda. Martins Sarmento foi um desses homens excecionais.
O património, destruído pela indiferença
Em 1896, o político e escritor Guerra Junqueiro escrevia, acerca dos portugueses, que era “um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai”. A crítica para com os portugueses era ríspida, mas a realidade dos factos, os “atentados” que vitimavam o património pela “indiferença dos poderes constituídos” segundo os termos do seu contemporâneo Ramalho Ortigão davam-lhe razão. Neste contexto desfavorável para o património português, um homem teve um papel de destaque, pela originalidade do seu trabalho e a pugnacidade com que o divulgou: Francisco Martins Sarmento.
Sede de conhecimento, poeta falhado
Nascido em 1833 em Guimarães no seio de uma família abastada, nada previa que este formado em Direito pela faculdade de Coimbra se tornasse num dos “pais” da arqueologia portuguesa. Nascido em berço de ouro, Martins Sarmento não tinha necessidade de trabalhar para o seu sustento. Mas ele tinha necessidade de conhecimento. Uma sede, uma ânsia pelo Saber que nunca o iria deixar ao longo dos seus 66 anos de vida, até à sua morte em 1899, na sua cidade natal. Após infrutíferas tentativas de ser poeta nos seus anos de juventude, Martins Sarmento dedica-se à fotografia, elemento fundamental dos seus futuros trabalhos. A par da fotografia, escreveu em publicações onde se apregoava o “despertar da cultura portuguesa“, inseridas no vasto movimento Romântico do século XIX.
Origens de Portugal
Quis o acaso ou a Providência que Martins Sarmento tivesse morada em Briteiros, junto ao monte de São Romão, nas proximidades de Guimarães. A sua curiosidade natural foi atraída por formações arquitetónicas presentes no monte. Começa assim em 1874 a grande obra da sua vida: a exploração arqueológica da Citânia de Briteiros e o conhecimento dos primeiros povos que povoaram o que é hoje Portugal.
Metodicamente, o antigo castro foi-se revelando aos portugueses e ao mundo pelo esforço de um homem, em substituição clara do papel do estado, suposto ser responsável pelo património histórico desde o alvará joanino de 1721, mas que à altura, pouco ou nada fazia.
Defensor do património
Este caso é paradigmático da consideração do património por parte do estado em Portugal durante todo o século XIX. Os governos sucessivos ignoraram a herança dos nossos antepassados, quando não o destruíam como nos princípios dos governos liberais. As iniciativas em prol do património eram raras, principalmente obra de personalidades fora do comum.
Neste ano de 1874, Martins Sarmento não pediu ajuda ao estado. Com a sua fortuna pessoal, comprou o terreno onde se situava a Citânia. Sabendo que o estado não tinha nem orçamento, nem vontade para a salvaguarda do nosso passado arquitetónico, o agora arqueólogo Martins Sarmento adquiriria doravante cada vez mais monumentos no norte de Portugal. Para estudo, mas também para garantir a sua conservação.
Etnólogo
Embora sendo um erudito completo, Martins Sarmento pugnava por um conhecimento prático, baseado em descobertas factuais. Neste aspeto, ele aproximava-se da escola metódica nascente, aliando a erudição às descobertas “no terreno”. Para se escrever sobre História, o método científico deveria ser primordial, pela critica das fontes escritas ou, como no caso da Citânia de Briteiros, pelo uso da arqueologia. Martins Sarmento não se via como um “simples” arqueólogo, mas como um etnólogo, à procura da origem mais profunda do povo português, em todas as fontes que tinha à sua disposição.
Conferências e congressos
Para conseguir os seus objetivos no avanço do conhecimento, em prol da pesquisa e do património arqueológico, organizou dois eventos da maior importância in loco. O primeiro evento, a “Conferência da Citânia” teve lugar em 1877, com a presença de algumas das mais ilustres personagens relacionadas com a História ou o património nacionais. O segundo evento, o “Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica ao Norte de Portugal” juntou vários especialistas internacionais, consagrando Martins Sarmento como um científico da maior importância.
O seu trabalho de escavação sistemática da Citânia de Briteiros foi acompanhado pelos seus numerosos e inovadores registos fotográficos. A fotografia, para além de permitir a divulgação científica e cultural do património, também permite fixar na memória dos homens o aspeto do monumento aquando da captação da imagem. É hoje um documento imprescindível na eventual reconstrução do património após anos de degradação dos homens ou do tempo.
Um eterno recomeço?
O Portugal do século XXI, apesar de bem diferente do país que conheceu Martins Sarmento, ainda padece de muito dos seus males antigos. Após a crise de 2008, a Citânia de Sanfins, outro castro de maior importância da região ficou com o seu centro interpretativo acabado de inaugurar praticamente ao abandono, tal como a própria Citânia como verifiquei aquando da minha visita em 2017.
A Citânia de Briteiros, ainda hoje propriedade da Sociedade Martins Sarmento, herdeira do arqueólogo, continuou de funcionar normalmente. Tal como o arqueólogo, a Sociedade continua o seu trabalho de pesquisa científica, de conservação do património e da sua salvaguarda, para que os Portugueses se lembram de onde vêm, onde estão e para onde vão.
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