cidade medieval
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Classe média no final da Idade Média portuguesa

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Os finais da Idade Média foram marcados por importantes mudanças sociais. As diferentes crises do século XIV, por entre pestes e guerras, criaram condições para que a “arraia miúda” fosse mais tida em conta nas decisões políticas ao nível local. Este fato será notável com a grave crise de 1383-1385.

Corporações de ofício

Lisboa, como tantas outras cidades do reino, tinha foral. Este fato conferia-lhe uma relativa autonomia, em que os cidadãos só dependiam do próprio rei e não de um senhor feudal ou do poder eclesiástico para se organizarem. Neste contexto, as corporações de ofício, ou mesteirais, tinham-se tornado necessárias face às crises cada vez mais frequentes que se faziam sentir no decorrer da Idade Média. Um sentido agudo de sociabilidade, entreajuda e da necessidade de representatividade e poder de negociação levaram a que pessoas semelhantes se juntassem em corporações.

No final da Idade Média, a organização das cidades com foral era o feito dos privilegiados que dominavam os cargos concelhios e as câmaras. O ponto de viragem deu-se quando Dom Dinis favoreceu os “homens bons” em Lisboa, pondo de parte os mesteirais nas decisões camararias após uma malograda tentativa de inclusão. Desde então, as antigas “assembleias de vizinhos”, em que todos participavam, fossem burgueses, mesteirais ou simples particulares, foram pouco a pouco substituídas por “vereações”, assembleias restritas à elite local.

Luta para ser representado

O que poderíamos chamar hoje de “classe média” só rara vez seria então chamada a intervir com poder de decisão nestas assembleias do concelho, sendo o seu papel então meramente consultivo. As decisões finais ficavam à cargo de uma oligarquia avalizada pelo poder régio. As intervenções dos mesteirais durante o século XIV eram episódicas, com respeito na maioria das vezes, a assuntos que lhes incumbiam diretamente (fixação de preços dos bens ou serviços que produziam por exemplo) ou na posta em prática de decisões que diziam respeito a toda a cidade de especial importância.

Os mesteirais aqui em estudo eram compostos por uma população socioprofissional heterogénea, exercendo ofícios hierarquizados aos olhos do restante povo. Um ourives tinha assim mais prestígio do que um carniceiro. Cada mesteiral podia ser ouvido separadamente dos seus congéneres pelas autoridades, se o assunto fosse do seu interesse particular. Aos olhos da Assembleia Municipal, porém, não existia uma real diferenciação hierárquica entre mesteirais, os ourives não tendo mais poder de deliberação do que os tecelões, ou seja, nenhum ou muito à margem.

Sapateiros
Sapateiros

Autoridade e mesteirais

É de notar que existia três formas de interação dos mesteirais com as autoridades concelhias.

  • A primeira, era a presença de vários mesteirais de um mester. Todos, ou quase todos os praticantes do ofício podiam assim serem representados diretamente junto das “vereações”, como “corpo de mester”.
  • A segunda seria a escolha de representantes de um mester. Nesta segunda forma, podia-se convocar excecionalmente todos os mesteirais pelos seus representantes.
  • A última forma seria a presença de individuais, representando tão somente os seus problemas pessoais à Assembleia Municipal. Estes individuais até podiam ser eles próprios “homens-bons”.

O século XIV foi um século de grande crescimento dos mesteirais, cada vez mais numerosos e importantes na economia lisboeta. Mas apesar desta presença social cada vez mais acrescida, o poder representativo dos mesteirais não lhe era correspondida, tendo sempre a oposição da burguesia local. Os mesteirais tinham poucos recursos para contestar decisões contrárias aos seus interesses. Podiam pedir a intervenção régia, ou simplesmente fazerem greve, como se verificou noutras cidades. A greve era um modo extremo de contestação, podendo desembocar em prisão ou até mesmo pela substituição do grevista, já que certos ofícios eram controlados pela cidade. Este controlo obrigava o mester a certos deveres, sob pena de perder o seu direito de exercer o seu ofício.

cidade medieval
Cidade medieval

Casa dos 24

Tudo muda com as revoltas de 1370-1380, causadas pelas Guerras Fernandinas. As demandas feitas pelos mesteirais ao futuro Dom João I foram tidas em conta, o que lhe deu o apoio decisivo desta população trabalhadora e urbana. Por outras revindicações, destacamos duas, cruciais. Doravante, não poderia haver decisões sem a presença e o consentimento de mesteirais. Indícios apontam já para 1384 a data da criação da “Casa dos 24”, com dois representantes por mesteiral. A segunda reivindicação que tomamos em conta são os impostos, que seriam pagos consoante as riquezas do contribuinte. Lembramos aqui que eram os mesteirais que pagavam até então a maioria dos impostos, tendo a oligarquia o privilégio bastante comum de ser isenta. Os mesteirais, com a chegada à regência do Mestre de Avis, obtiveram assim um maior controlo sobre o destino de Lisboa. Apesar das conquistas dos mesteirais, a burguesia e a aristocracia local não deixará de se opor-lhes durante o século seguinte, conseguindo vários retrocessos noutras cidades do país.

Bibliografia

GOMES MARTINS, Miguel – O concelho de Lisboa durante a Idade Média: homens e organização municipal (1179-1383). Cadernos do Arquivo Municipal, série 1, número 7 (199?). Câmara Municipal de Lisboa, Arquivo Municipal. Lisboa. [em linha] [consultado em 20/05/2019] Disponível em http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/fotos/editor2/72.pdf

MELO, Arnaldo Sousa – Os mesteirais e o poder concelhio nas cidades medievais portuguesas (séculos XIV e XV). (2013) Edad Media, Rev. Hist. 14. Valladolid: Universidad de Valladolid.

PRADALIE, Georges – Lisboa da Reconquista ao Século XIII. Lisboa: Palas Editores (1975).


Conversa

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