Carlos Seixas, compositor português, surge em Portugal como um caso único. Conhecido pelas suas composições para cravo e órgão, Seixas destoa na Lisboa do “beato” D. João V, cada vez mais dominada pela influência musical italiana.
Música de Igreja
Quando a Inquisição foi instaurada, a Igreja começou a desempenhar um papel inédito na produção cultural portuguesa. Um controlo da sociedade, acentuado pelo vazio que a Igreja preenchia durante a ausência da corte em Lisboa durante o domínio espanhol de grande parte do século XVII. Este controlo continuou, mesmo com o regresso de uma dinastia portuguesa ao trono. No século seguinte, a ligação do rei D. João V para com a Igreja deixou pouco espaço para a música profana. As tendências absolutistas do rei, as suas ânsias e o seu gosto pela ostentação na primeira metade do século XVIII exprimiram-se plenamente na paisagem musical portuguesa, dominada pela música de igreja.
De facto, as obras religiosas dominavam, dedicadas ao serviço litúrgico. Música essencialmente vocal, feita de cantochões, de música polifónica ou até de vilancicos, ensinada no seio de instituições religiosas, como a Sé de Évora, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra ou a Capela Real. Esta última, por vontade de D. João V, obteve um papel preponderante na música portuguesa no seu reino. D. João, desejoso de repor Portugal no “mapa” das grandes nações europeias, estava atento ao que se fazia no estrangeiro. A dignidade de Portugal passava, para ele, pelo reconhecimento dos outros países, sarando desta forma definitivamente as feridas no orgulho nacional abertas pelo domínio filipino. Para tal, e com a ajuda preciosa do ouro do Brasil, D. João V elabora uma estratégia diplomática da primeira importância, com Roma no centro das suas atenções.
Música italiana em Portugal
A Roma da primeira metade do século XVIII era sem dúvida um dos mais importantes centros musicais europeus. A Itália, grande impulsionadora do movimento Barroco que dominou as Artes europeias, liderava também a produção musical europeia. Os músicos e compositores estrangeiros vinham a Itália aperfeiçoarem-se, influenciados por compositores da era Barroca como Antonio Vivaldi ou Domenico Scarlatti. Como na restante Europa, salvo a exceção francesa, Portugal italianiza-se. D. João V, desejoso de estar na “linha da frente” no que há de melhor, dota a Capela Real de fundos avultados, e associa-lhe uma nova escola, o Seminário Patriarcal de Lisboa em 1713. Esta política voluntarista permite o envio de alunos bolsistas para Itália, e trazer para Lisboa alguns dos melhores mestres italianos, que irão marcar a vida musical portuguesa.
A vinda destes mestres, versados em música religiosa, mas também profana, aumentou a porosidade entre ambas. Desta forma, Portugal não estava fechado à prática de música instrumental, se bem que muito reduzida em comparação com a música vocal. Segundo José Bettencourt da Câmara, Portugal carecia de condições “ideológicas” que permitissem o desenvolvimento da música instrumental. Não havia mercado para música fora da esfera religiosa, por assim dizer. Ao contrário da Itália ou da Alemanha, constituídas de miríades de pequenos estados em concorrência, onde toda e qualquer corte devia ter os seus músicos como meio de representação, Portugal, pequeno país unificado, não era um terreno propicio para esta emulação. Para mais, nem a burguesia, nem a nobreza eram motores da procura de música instrumental, salvo raras exceções, como a própria esposa do rei, D. Mariana de Áustria, e outros estrangeiros vivendo na capital portuguesa.
Domenico Scarlatti
A chegada de Domenico Scarlatti, mestre da Capela Giulia em 1719 para dirigir a Capela Real marcou a italianização musical portuguesa, culminando com a proibição em 1723 dos vilancicos ibéricos, outrora tão populares. A sua contribuição para o desenvolvimento da música profana de cariz italiana na corte de D. João V é incontestável, pelas sonatas para cravo que compôs para a infanta Maria Bárbara, cravista eximia.
As festas ou as cerimónias de gala eram agora acompanhadas com serenatas, cedo copiadas pela nobreza, abrindo o caminho para os primeiros espetáculos de ópera nos anos 1730. A tímida introdução da ópera em Portugal pela mão dos bolseiros em Roma que foram Francisco António de Almeida e António Teixeira foi confirmada pelo sucesso que cedo alcançou na segunda metade do século XVIII. A música instrumental parece ter sido limitada aos salões privados, ao círculo restrito de alguns nobres ou burgueses.
Carlos Seixas, exceção portuguesa
Sendo Scarlatti um dos mais exímios compositores para cravo do seu tempo, a sua influência não se podia ficar pela música vocal. Carlos Seixas, organista e filho do organista da Sé de Coimbra, veio para Lisboa em 1720, aos 16 anos de idade.
Integrando a Capela Real como organista, foi depois vice-mestre desta instituição, secundando Scarlatti e compondo também ele obras religiosas vocais. Sendo colegas, Scarlatti, com mais experiência, por certo transmitiu alguma da sua sabedoria e influência ao jovem Seixas. Mas, a haver transmissão, não impediu ao português de guardar uma profunda originalidade e até, como o sugere Luís Pipa, ter também por seu turno influenciado o mestre italiano.
Seixas, sendo organista, não podia deixar de ser original no contexto italianizante. A península ibérica tinha desenvolvido para o órgão uma tradição própria, que naturalmente tingiu o jovem compositor português. Para José López-Calo, terá sido Scarlatti a ter dado a ideia de compor sonatas a Seixas, uma forma musical então inexistente em Portugal. Mas Carlos Seixas, que compôs numerosas sonatas para cravo, guardou as suas especificidades ibéricas. Utilizou a forma musical italiana, mas com a sua forte influência de organista ibérico. A sua independência artística, ele que nunca viajou para Itália, confirma-se por exemplo na sua obra pioneira na Europa, o “concerto em Lá maior para cravo e orquestra de cordas”, uma obra prima da música barroca.
Bibliografia
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