O século XVI, século do apogeu da expansão marítima portuguesa, foi um período de profundas mudanças, tanto em terras lusas como em toda a Europa. Com a “redescoberta” da Antiguidade Clássica durante o século anterior, intelectuais, artistas e arquitetos italianos adotaram os códigos da “beleza” greco-romana.
Este novo movimento, a que o primeiro historiador da Arte Giorgio Vasari chamou de Renascimento, alcançou toda a Europa. Porém, Portugal, como país periférico da cultura “vanguardista” europeia, demorou mais tempo em adotar plenamente a construção “ao romano”, como se chamava então a arquitetura renascentista de inspiração greco-romana.
O Manuelino
No início do século XVI, D. Manuel foi um rei centralizador, ordenando o território português e impulsionando a Arte em Portugal através de um ambicioso programa arquitetural. Este facto deu força ao estilo que hoje tem o seu nome, o manuelino. Esta variante portuguesa do estilo tardo-gótico europeu, matizada de arte mudéjar, servia os propósitos nacionalistas e de afirmação pessoal do rei.
Pela sua rica ornamentação, evocando a epopeia marítima portuguesa, o manuelino afirmava a identidade única portuguesa no seio da Europa. Esta vontade de afirmação pessoal e nacional de D. Manuel não se enquadrava com a importação de um estilo vindo de fora. Por outro lado, as próprias necessidades pragmáticas de um país virado para o ultramar e o comércio permitia o surgimento de soluções profundamente originais, com o surgimento de um outro Renascimento em Portugal, profundamente diferente do italiano, um “Renascimento sem classicismo” como o afirma o historiador da Arte Paulo Pereira.
O programa de ordenação do espaço urbano lisboeta, com a construção do Paço da Ribeira ou do Hospital Real de Todos os Santos, permitiu a afirmação do poder real com uma arquitetura retórica. O uso e abuso da rica ornamentação manuelina, feita de motivos como cordagens, esferas armilares ou de brasões reais serviam plenamente os propósitos de D. Manuel, numa lógica de afirmação do seu poder.
Uma arte nacional… com contributos estrangeiros
Curiosamente, alguns dos principais arquitetos ativos em Portugal durante o Renascimento português eram estrangeiros, trazendo consigo as influências das suas origens.
Tal foi o caso com Diogo Boitaca, provavelmente francês. Boitaca participou em obras tão emblemáticas do manuelino como o mosteiro dos Jerónimos ou a Torre de Belém, onde está patente mais do que em qualquer outro sítio a originalidade nacional. Esta afirmação de um estilo “português” por parte de arquitetos estrangeiros demonstra a capacidade destes em se adaptar e acompanhar a evolução dos gostos.
De facto, será pela mão de um arquiteto biscainho que esta adaptação será mais evidente. João de Castilho, originário do País Basco, traz consigo influências do Plateresco espanhol. Tal como o estilo manuelino, este estilo está incluído no movimento mais amplo do tardo-gótico, mas com pormenores denotando já influências clássicas como a inclusão de capiteis clássicos ou de medalhões na sua ornamentação.
A resistência portuguesa ao estilo clássico – conotado com o paganismo – foi desta forma “quebrada” aos poucos, fruto de uma longa evolução, patente nos ornamentos dos Jerónimos por Castilho, ou no programa arquitetural mais emblemático da transição do manuelino para a obra “ao romano”, o Convento de Cristo. A renovação do convento ao gosto manuelino encetada pelo português Diogo de Arruda foi continuada por João de Castilho, um arquiteto que soube evoluir como o seu tempo.
Arte “ao romano”
Os prenúncios da arte “ao romano” estavam presentes na ourivesaria ou pintura portuguesas do início do século XVI. O relicário de D. Leonor, elaborado por volta de 1515-1520 é uma plena expressão do classicismo. O mesmo acontece com as obras de Grão-Vasco, pinturas que ficarão marcadas do cunho clássico principalmente a partir de D. Miguel da Silva, bispo de Viseu e seu mecenas. D. Miguel, de formação humanista e embaixador durante largos anos em Roma, voltou a Portugal em 1525, com um gosto pronunciado pela arte Renascentista italiana. Como tal, marcou o norte de Portugal com construções inovadoras.
A capela de São Miguel, o Anjo e a igreja velha de São João da Foz, ambas no Porto, demonstram todas as características do racionalismo e inspiração clássica italianas. Estes prenúncios são, porém, ainda casos raros em Portugal, tendo de conviver ainda com o estilo “moderno”, como se chamava ao estilo manuelino. Foi pelo ornamento que se começou a incutir a construção “ao romano”, cada vez mais sistematicamente após as “experiências” de D. Miguel da Silva. Outras obras apresentaram no seu programa ornamental vínculos resolutamente clássicos.
É o caso em Coimbra da Porta Especiosa da Sé realizada por João de Ruão em 1530. Na mesma cidade, e no mesmo ano, a Fonte da Manga afirma-se completamente no classicismo renascente. Esta pequena construção assinala a passagem de Portugal para o novo gosto, para uma nova maneira de conceber a arquitetura, agora clássica. Esta transição não foi feita substituindo os artistas e arquitetos existentes, mas com a adaptação destes aos novos cânones de beleza, estudados em Vitrúvio ou nos seus intérpretes do Renascimento italiano, como Leon Battista Alberti. Uma beleza feita de racionalismo, de volumes e de vazios, por oposição à profusão ornamental do gosto “moderno”, ou seja, manuelino.
A mudança de gosto
João de Castilho, em Tomar, adotou perfeitamente estes novos códigos e não hesitava agora em esconder se necessário a heráldica manuelina do Convento. O Convento de Cristo é o melhor exemplo do acompanhamento da mudança de gosto, pela dimensão da obra, no tempo e no espaço, onde o apogeu do manuelino convive com o classicismo mais perfeito. A mais pura expressão do classicismo ficou visível na sua ermida de Nossa Senhora da Conceição, 25 anos após os seus princípios manuelinos nos Jerónimos ou na Sé de Braga. A ermida, a princípio destinada a ser o mausoléu de D. João III, é indicativa da mudança de gosto. Integrada na linguagem renascentista “internacional”, possui todas as suas características, do racionalismo dos seus volumes ao programa ornamental, feito de colunas e capitéis coríntios no seu interior e de pilastras jónicas ou frontões triangulares no seu exterior.
A mudança de gosto, irrequieta, ficou ainda patente no claustro maior do convento, edificado cerca do ano de 1540 por Castilho, ao gosto “romano”. Este claustro foi substituído por um novo claustro a partir de 1558, o claustro de D. João III, obra de Diogo da Torralva, num estilo agora mais “erudito”, influenciado pelo tratado de arquitetura do italiano Sebastiano Serlio. A obra renascentista tomarense serviu de escola formativa para uma nova geração de arquitetos, que irão marcar os anos seguintes em Portugal. Os pressupostos humanísticos do Renascimento exprimiam-se com mais clareza no grande estaleiro de Tomar, pela arquitetura das suas partes, mas também pela sua organização espacial e racionalização do espaço público.
Esta geração de novos arquitetos que seguiram João de Castilho, como Torralva ou Miguel de Arruda, filho do Diogo de Arruda, vai aplicar à risca o programa clássico. Vemo-lo na pequena Capela do Bom Jesus de Valverde, de Miguel de Arruda. Doravante, a elite governativa aprecia o estilo clássico, entronizando desta forma a influência italiana em Portugal. Apesar desta apreciação, as obras marcadamente clássicas não tiveram tempo para ter expressão significativa em Portugal, salvo exceções notáveis como o Palácio Ducal de Vila Viçosa, pelas dimensões reduzidas das obras, tanto em tamanho como em número.
Mas conseguiram pelo menos abrir Portugal ao gosto estrangeiro, mais propriamente italiano, com a chegada relativamente rápida do maneirismo, ainda que, tingindo de particularidades lusas. Assim se pode interpretar o “estilo chão”, tipicamente português, fruto de um classicismo erudito agora em vigor. Despojado na sua ornamentação, o estilo chão foca-se na clareza e na ordem, nas proporções e nos volumes, obedecendo a regras matemáticas e racionais, condicionando o estilo dominante seguinte em Portugal: o Barroco.
Bibliografia
GOMBRICH, Ernst – Histoire de l’art. 7ª ed. Paris : Phaidon, 2001.
PEREIRA, Fernando António Baptista – História da arte moderna portuguesa: Maneirismo, estilo chão e Barroco. [Registo Vídeo] Realização de MEXIA, José. Lisboa: Universidade Aberta, 1992. 1 prog. vídeo (25 min., 33 seg.). Disponível em: https://vimeo.com/user34119652/review/173328720/d54ab81ca6
PEREIRA, Paulo – Arte Portuguesa, História Essencial. Lisboa: Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2014.
SILVA, Ricardo Jorge Nunes da – O Paradigma da arquitetura em Portugal na Idade Moderna. Entre o tardo-gótico e o Renascimento: João de Castilho “o mestre que amanhece e anoitece na obra”. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018. Tese de doutoramento.