Em Portugal, a aprendizagem generalizada da leitura e do escrever foi um processo lento, em nítido atraso por comparação com os seus parceiros europeus, como indicam os diferentes Censos que ocorreram ao longo do século XX.
Saber ler e escrever é, nas nossas sociedades modernas, normal, para não dizer obrigatório. Fator de coesão social dos Estados-Nações que se desenvolveram no século XIX, a alfabetização coincidiu com uma mudança profunda da organização laboral.
A segunda metade do século XIX foi um período de progresso económico, grande objetivo dos sucessivos governos liberais. O investimento massivo em obras públicas contrastava com a deficiente educação da população portuguesa. A instrução massiva nunca foi uma prioridade política, apesar de algumas tentativas precoces. Portugal, raro país unido linguisticamente, não precisava de se construir como Estado-Nação, já o era de facto.
Combate republicano
Com a crise financeira dos anos 1890, as ideias republicanas progrediam, baseadas no aproveitamento das colónias e na educação da população. Foi para responder aos Republicanos que a monarquia constitucional começou, finalmente, a investir na instrução pública.
Apesar dos progressos serem lentos, na transição para o século XX, quase todas as freguesias do país já tinham uma escola de instrução primária. Mas nos Censos de 1900, 74% da população ainda permanecia sem saber ler nem escrever. Apesar da escola ser gratuita, o seu interesse parecia limitado para um povo ainda essencialmente rural. Dependentes de uma agricultura de subsistência, a maioria preferia a ajuda do trabalho infantil nos campos ao estudo sem reais aplicações práticas profissionais.
A mobilidade social pela educação parecia ainda não ser um dado adquirido. Este facto só a muito custo irá se esbater na primeira metade do século XX.
Para se compreender melhor o atraso de Portugal no fim da monarquia, podemos comparar com a França, na mesma altura. Quando em Portugal a instrução pública limitava-se a três anos, obrigatórios na Lei (mas facultativos na prática), em França a escolaridade já era obrigatória de facto dos 6 aos 13 anos de idade desde as leis de Jules Ferry de 1882.
O exemplo de uma aldeia
O pouco interesse que suscitava a escola nos primórdios do século XX pode ser ilustrado pela realidade concreta de uma aldeia rural de Portugal. Não sendo representativa de um todo português, a evolução da instrução na freguesia de Beco no concelho de Ferreira do Zêzere permite ancorar a frieza dos números globais às vivências locais. A maioria das pessoas nascidas entre 1888 e 1914 não sabia ler, com uma incidência ainda maior nas mulheres.
Metade dos poucos que sabiam ler aprenderam fora do circuito escolar oficial. A aprendizagem ainda era muito informal, feita segundo as necessidades pessoais e profissionais.
Limites do Estado Novo
A implantação da Républica e a criação de um Ministério da Instrução Pública definitivo veio trazer magras melhorias no panorama escolar português, que a Ditadura Militar e o Estado Novo prosseguiram até os anos 1940. Apesar de magros, estes esforços traduziram-se em melhorias da taxa de alfabetização, a par do progresso das profissões urbanas. A qualidade do ensino administrado pela escola da primeira década do regime autoritário era, porém, menos ambicioso do que o da primeira Républica. O tempo de escola obrigatório foi reduzido, passando dos 4 anos da Républica para 3 anos. O ensino primário era visto antes de mais como um meio de inculcação ideológica.
As mutações socioprofissionais parecem mesmo serem as principais motivações para se aprender a ler. Novas profissões exigem novas competências. A necessidade de se saber ler ou a obtenção do diploma da 4ª classe tornou-se obrigatória para se poder praticar certas profissões. Isto levou alguns aldeões da freguesia do Beco a prosseguirem a sua alfabetização, já adultos. Os números globais dos Censos o confirmam, muitos portugueses aprenderam a ler já depois das idades consideradas “normais”.
As mulheres não precisam de saber ler
O estatuto das mulheres nesta primeira metade do século XX muda pouco. Ligadas às lides domésticas e ao campo, não se sentia necessidade nesta sociedade patriarcal de mulheres que soubessem ler, pelo que a progressão da sua alfabetização foi mais lenta do que nos homens. A pouca mobilidade social não incentivava as gentes do Beco em estudar, ainda para mais quando se era mulher.
Com os anos 1950, a mudança acelerou francamente, adaptando-se à realidade socioeconómica do pós-guerra. Com o forte crescimento demográfico, a agricultura de subsistência já não era viável na maioria dos casos. Este facto levou cada vez mais pessoas a procuraram outros caminhos. Os novos empregos na área industrial ou a emigração foram escapatórios à pobreza rural. Pelos Censos sucessivos, poderá emitir-se como hipótese que uma parte substancial dos emigrantes dos anos subsequentes eram analfabetos, a taxa de analfabetismo descendo rapidamente.
Por fim, a escola obrigatória de facto
Neste período, já a escola tornara-se normal, e o principal meio de alfabetização da população. As profissões disponíveis e a pressão das elites assim o exigiam. Em 1952, estabeleceram-se multas pecuniárias avultadas, confirmando agora na prática a obrigatoriedade da frequência escolar. Não existe mais, na freguesia em exemplo, crianças escolarizadas nos anos 1950 que sejam analfabetas, salvo duas exceções.
Apesar das melhorias notáveis, observava-se ainda nos anos 2000, a nível nacional, fortes atrasos escolares para com os outros países da União Europeia. No ano 2000, só 19,4% da população tinha terminado um curso secundário, contra 64,4% na União Europeia dos 27. Porém, o futuro promete muito: em 2019, a taxa de abandono escolar portuguesa estava praticamente a par com a média europeia: 10,6%. Em 2000, esta taxa era de 43,6%.
Ruralidade e alfabetização
O que ressalta na evolução da alfabetização em Portugal, é a sua estreita ligação com a ruralidade e o trabalho infantil. No início do século XX, a ajuda nos campos por parte das crianças era considerada imprescindível, sacrificando-se sem muitos remorsos a instrução. Com o evoluir da sociedade, o trabalho infantil tornou-se cada vez menos importante para os pais, libertando-os aos poucos para a escola. Em 1950, já ninguém impedia a escolarização de crianças por motivos económicos. Este longo processo da transformação de uma sociedade rural para uma sociedade maioritariamente urbana permitiu às crianças dos anos 1980 já não organizar a sua vida em torno dos campos, mas sim da escola. Doravante, o “trabalho” aos olhos de uma criança já não seria a alimentação do gado ou a ceifa de cereais, mas os trabalhos para casa.
Bibliografia
- CANDEIAS, António; SIMÕES, Eduarda – Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos Nacionais e estudos de caso. Análise Psicológica. Lisboa: Instituto Superior de Psicologia Aplicada, vol.17, no.1, 1999 (pp. 163-194).
- MATA, Eugénia e VALÉRIO, Nuno – História Económica de Portugal. Uma perspectiva global. Lisboa: Editorial Presença, 2003 (pp.176-247).
- Mendonça, Alice – Evolução da política educativa em Portugal. Universidade da Madeira. [Consultado em 04/05/2020]. Disponível na Internet