A conservação do património artístico e a sua valorização pública em museus foi, no Portugal do século XIX, algo que se construiu aos poucos, sempre feita de avanços e retrocessos.
No século anterior, o museu arqueológico na sede da Academia Real de História de Portugal, instituído por D. João V, era pioneiro na Europa. Infelizmente, perdera-se com o terramoto de 1755. Só se voltará a falar de um museu público do Estado dedicado à Arte novamente com o Museu Portuense, no seguimento da Revolução Liberal.
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Colecionismo privado
Apesar dos infortúnios, o interesse pelas potencialidades pedagógicas dos museus esteve sempre presente. Foi necessária toda a força de vontade do marquês de Pombal para que se criasse um museu de caráter publico e pedagógico como o Real Museu da Ajuda, futuro Museu de História Natural. A Arte não constava das prioridades, mas à falta de presença – ou de vontade – das instituições públicas na criação de museus ligados à Arte, substituía-se a iniciativa privada.
O gosto pelo colecionismo marcou os Portugueses, desde os primórdios da Nação. Mas estas coleções estavam principalmente nas mãos de particulares, longe da vista do público geral. Apanágio dos poderosos, fossem nobres, eclesiásticos ou burgueses, as coleções serviam os gostos pessoais, à devoção ou propósitos de prestígio, como foi o caso das coleções reais. Não se procurava criar coleções para servirem de instrumentos de pedagogia, muito menos se pensava no “bem comum”. Este colecionismo vai imperar até a vitória dos ideais liberais e a consequente criação do Museu Portuense, testemunho da passagem do colecionismo por gosto pessoal à musealização como instrumento de aprendizagem.
Museus, instrumentos de progresso
A Europa conhecia um frenesim cultural sem precedentes, ao ritmo da Revolução Industrial e da urbanização galopante. A adicionar ao progresso técnico, o progresso das ideias iluministas, cristalizadas na Revolução Francesa. Neste contexto, o Liberalismo procurava a “Ordem e o Progresso” pela educação das populações, pela divulgação do conhecimento. Os museus eram uma das facetas deste programa, ao transferir as coleções privadas para a posse e exposição públicas, para bem de todos. A Revolução Liberal portuguesa, em luta contra a ordem antiga, só podia ser favorável a tal desígnio. Sob a alçada de Passos Manuel, aparece toda uma legislação favorável à promoção da educação dos portugueses, à reforma da instrução pública, criação de conservatórios, academias, bibliotecas e por fim, museus, tanto a nível nacional e regional. Os objetos de arte participavam deste ambicioso programa.
Quando o pintor João Baptista Ribeiro sugeriu a D. Pedro IV a criação de um museu ainda durante o Cerco do Porto, estavam reunidas as condições ideológicas para isso, a que se juntaram as condições materiais no desfecho da Revolução Liberal. Com a derrota dos miguelistas e a extinção das ordens religiosas em 1834, o país recuperou um espólio gigantesco de obras de arte, que lhe competia agora valorizar, para o bem coletivo. O paralelo com a criação do Musée du Louvre em 1792 pelas forças revolucionárias francesas é evidente, Portugal inscrevendo-se no amplo movimento europeu do avanço das ideias liberais.
Desinteresse das elites
Apesar do progresso evidente nas mentalidades, as elites portuguesas ainda não pareciam na sua maioria valorizar o seu próprio património, por desinteresse ou descuido, as coleções podendo até ser dispersas, quando não destruídas. Não havia vontade por parte dos colecionadores privados em expor ao público as suas coleções.
Foi preciso toda a energia de um cidadão britânico, morador no Porto, para que o primeiro museu aberto ao público iniciasse a sua atividade em 1836, quatro anos antes do Museu Portuense. John Allen, rico comerciante portuense de origem britânica permitiu desta forma ao público apreciar as suas coleções privadas. Porém, esta abertura ao público daquele que viria a ser o futuro Museu Municipal do Porto, fruto de um empirismo e amadorismo esclarecidos não obedecia ainda totalmente ao ideal científico da época.
O ecletismo das coleções, fruto do gosto pessoal de Allen e da sua curiosidade enciclopédica, não era compatível com um programa cuidado de educação artística destinada ao público. Desta forma, as coleções eram expostas de maneira desordenada, sem programa pedagógico construído, obedecendo nada mais do que ao gosto de Allen. A sua abertura ao público também era limitada, o museu só estando acessível certos dias da semana. O seu grande mérito foi o de abrir caminho para uma nova consciência do fenómeno museológico no seio da cidade do Porto, compensando em parte as falhas do Estado.
Museu Portuense
Com a abertura finalmente em 1840, ao fim de largos anos de preparação, do Museu Portuense, consagrava-se a doutrina pedagógica do governo liberal, bem como a salvaguarda do património. O objetivo era duplo: fazer crescer a consciência de pertença a uma Nação pelo conhecimento da sua história, civilização e Arte, materializada nos museus, e enaltecer as mentalidades para o progresso.
Os objetivos, mesmo que ideologicamente centrais no novo Estado Liberal, depararam-se com as recorrentes dificuldades económicas do país. Problemas administrativos e de financiamentos atrasaram a abertura do Museu Portuense, que conhecerá sempre dificuldades ao longo do tempo em que esteve aberto. Mas ficou para a posteridade do liberalismo e do Museu Portuense a criação de uma Instituição de Utilidade Pública, abrindo caminho para outros museus públicos similares no país, para que a todos os Portugueses chegassem estes novos instrumentos de divulgação cultural, auxiliares do ensino, pelo menos nas intenções do Estado.
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